Com o início do novo pontificado, de Leão XIV, cresce o interesse pelo legado dos papas que escolheram o nome Leão, sendo objeto de artigos e reportagens a delinearem o perfil destes pontífices para a história da Igreja, como fizemos em artigo anterior. Mas como o próprio Papa reinante sinalizou, a inspiração para a escolha do nome esteve na encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, “entre outras coisas”. Isto nos instiga a elencar os outros aspectos do pontificado do último leão a reinar a Igreja.
O momento da eleição de Leão XIV é o de profunda insegurança doutrinária, causada por um aumento e estímulo interno da Igreja nos debates sobre questões sociais com viés questionável, como nas questões sinodais, disciplinares e pastorais, temas que causaram profunda apreensão nos fiéis. Se Leão XIV se inspirar nos outros aspectos do seu antecessor leonino, os católicos podem esperar tempos de maior solidez e quem sabe um renascimento da fé e autoridade eclesiástica.
O fato é que o pontificado de Leão XIII (1878–1903) é amplamente lembrado por sua emblemática encíclica Rerum Novarum, marco da doutrina social da Igreja. No entanto, limitar sua obra pontifícia à questão operária seria uma grande injustiça. Leão XIII escreveu mais de oitenta encíclicas, e muitas delas tratam de temas que transcendem a esfera social e abordam questões doutrinais, filosóficas, teológicas e espirituais fundamentais para a Igreja diante dos desafios do mundo moderno.
Para Leão XIII, não pode haver comunhão verdadeira sem submissão à Sé de Roma
Para além das questões sociais, portanto, um dos temas centrais de suas encíclicas é a autoridade do Papado. Na encíclica Satis Cognitum (1896), Leão XIII reafirma a necessidade da unidade da Igreja sob o primado do Papa. O documento condena os erros do protestantismo e do cisma oriental, insistindo que a verdadeira Igreja de Cristo é visível e hierárquica, fundada sobre Pedro e seus sucessores.
Outro tema frequente é o da relação entre fé e razão. Na encíclica Aeterni Patris (1879), ele promove uma revitalização do pensamento tomista como o caminho seguro para restaurar a filosofia cristã no combate ao racionalismo moderno. Ele conclama as universidades católicas a retornarem a Santo Tomás de Aquino como guia seguro da verdade filosófica e teológica, considerando-o o modelo perfeito de conciliação entre razão e revelação. Essa encíclica inaugura o chamado “renascimento tomista” no século XX.
A educação cristã e a autoridade da Igreja sobre o ensino também são defendidas em documentos como Immortale Dei (1885) e Sapientiae Christianae (1890). Leão XIII rejeita o laicismo que pretende separar completamente a religião do Estado e da vida pública. Ele insiste que a Igreja tem o direito e o dever de formar os jovens na fé, na moral e na verdade, e que o Estado deve respeitar e até cooperar com essa missão, especialmente nas sociedades de tradição cristã.
Na encíclica Providentissimus Deus (1893), Leão XIII trata da inspiração e interpretação das Sagradas Escrituras. Ele defende a inerrância da Bíblia e a sua leitura à luz da tradição e do Magistério da Igreja, combatendo os excessos do historicismo e do racionalismo na exegese moderna. O Papa reafirma que a Escritura é palavra de Deus e, por isso, não pode conter erro, ainda que seja necessário considerar os gêneros literários e o contexto.
O rosário e a devoção mariana ganham destaque em várias encíclicas, como Octobri Mense (1891) e Laetitiae Sanctae (1893), nas quais ele exorta os fiéis ao uso do rosário como arma espiritual contra os males do tempo. A devoção a Maria é apresentada como instrumento de restauração moral e espiritual para os lares e para a sociedade.
Por fim, há também reflexões sobre os anjos e os santos, como na encíclica Mirae Caritatis (1902), sobre a Eucaristia, e outras que tratam de São José e São Francisco de Sales. Esses escritos destacam o papel da santidade e da oração na vida cristã, como resposta às ideologias que procuram esvaziar o valor do sobrenatural.
Em suma, as encíclicas não sociais de Leão XIII revelam um pontífice profundamente preocupado com os fundamentos da fé, a integridade da doutrina e a presença viva da Igreja em um mundo abalado pelo secularismo, pelo racionalismo e pelo modernismo incipiente.
Seu magistério representou um esforço notável de consolidar a tradição diante das mudanças da modernidade, oferecendo uma bússola teológica e espiritual para os católicos do seu tempo — e também para os nossos.
Legado recuperado
Leão XIII foi indispensável para o papado seguinte, o de Pio X, que combateu o mal do modernismo com pulso firme. Nos pontificados subsequentes esse combate se manteve, mas foi perdendo força graças a mudanças de paradigmas dentro da própria Igreja. Uma das modificações mais importantes da primeira metade do século foi a ideia de que a Igreja não conseguiria mais recuperar o poder de outrora, restando um apostolado mais tímido de adaptação à modernidade e conciliação com costumes cada vez menos associados à tradição. A baixada de guarda em relação ao combate ao modernismo, principalmente nos costumes, se deu por mudanças no próprio clero, repercussão das transformações sociais profundas que ocorreram por obra e ação de agentes revolucionários assumidamente anticatólicos.
A ação da maçonaria, assim como a dos movimentos comunistas que viram na família, fonte de vocações, uma maneira de sabotar o crescimento da Igreja, foi modificando a natureza dos vocacionados e criando uma nova sociedade à qual a própria Igreja passou a buscar adaptação. Sem uma maneira clara de lidar com o crescimento de doutrinas ateias e materialistas, aprofundou-se o relativismo e a própria Igreja começou a perceber o problema. O resultado último foi percebido por Bento XVI, que criticou a “ditadura do relativismo”.
É possível que o cardeal Prevost, agora Leão XIV, busque conciliar o legado de Bento XVI, uma forte inspiração sua, com uma gradação linguística lenta a partir do espaço midiático conquistado por Francisco.
Autor
Jornalista e escritor, autor do livro O Sol Negro da Rússia: as raízes ocultistas do eurasianismo, além de outros 5 títulos sobre jornalismo e opinião pública. Editor e fundador do site do Instituto Estudos Nacionais
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