Assim como age a indústria farmacêutica, o Kremlin não atua no financiamento direto de ativistas e movimentos, apesar de contar com uma estrutura robusta envolvendo seus oligarcas do regime. Em geral, o apoio acontece por meio do pagamento de eventos, convite para congressos e rede de influência, cooptação indireta, métodos desenvolvidos no tempo da União Soviética. O Instituto Estudos Nacionais desenvolveu mais um relatório técnico de cooptação russa de movimentos de direita em todo o mundo. Uma parte dele, porém, é dedicada a uma atividade pouco notada em nossos dias, que é a ajuda e apoio de movimentos de esquerda.
A velha subversão soviética focava principalmente na “crítica ao capitalismo” de movimentos, partidos e grupos. Isso hoje mudou, tendo sua atividade principal voltada a movimentos conservadores e tradicionais. Mas a velha atividade soviética se mantém inalterada quando o assunto é a desestabilização dos países alvo, isto é, as nações ocidentais.
A influência russa, via desinformação e operações psicológicas, não se limita a movimentos conservadores, nacionalistas ou de direita. Ao longo dos anos, órgãos de inteligência ocidentais, universidades e centros de pesquisa demonstraram que o Kremlin também explora divisões internas nas sociedades ocidentais apoiando, fomentando ou amplificando tanto grupos de direita quanto de esquerda, conforme sua estratégia de guerra híbrida. Isto se alinha perfeitamente ao que o ideólogo Alexander Dugin recomendou em seu livro Os fundamentos da geopolítica, lido e recomendado para o Estado-Maior russo desde 1999. Na obra, ainda sem tradução para o português, Dugin aconselha o uso de todos os instrumentos ideológicos que desestabilizem a sociedade ocidental e demonstrem as contradições e os problemas, exatamente na mesma linha das antigas fundamentações marxistas de subversão do período soviético.
A Estratégia da Subversão Simétrica
O objetivo russo, desde a Guerra Fria e intensificado na era digital, nem sempre se resume a apoiar uma ideologia específica, como atualmente no caso do eurasianismo, mas da mesma forma ampliar a instabilidade social, polarizar a sociedade e enfraquecer as instituições democráticas ocidentais. Por isso, a Rússia se envolve tanto com movimentos da direita ultranacionalista quanto com movimentos de esquerda identitária, anticapitalista ou racial, o que nem sempre é mencionado ou sabido por grupos conservadores que acabam cooptados por autoridades russas ou agentes de subversão para fazer o trabalho de crítica ao globalismo. Sem perceber, eles viram instrumentos nas mãos da velha “crítica ao capitalismo” feita costumeiramente pelos comunistas em todos os países que seguiram as estratégias do Kremlin.
Protestos do Black Lives Matter (BLM) — EUA, 2016-2020
Segundo os relatórios da Senate Intelligence Committee dos EUA (2019) e do Mueller Report (2019), a Agência Russa de Pesquisa na Internet (Internet Research Agency – IRA), financiada por oligarcas como Yevgeny Prigozhin, executou campanhas online que amplificaram narrativas do movimento Black Lives Matter, especialmente durante os protestos de 2016 e 2020, nos EUA. A IRA criou perfis falsos no Facebook, Instagram e Twitter como: “Blacktivist”, “Don’t Shoot”, “Black Matters US”. Essas páginas simulavam ativismo afro-americano, organizando eventos, fomentando discurso anti-polícia e promovendo o separatismo racial, enquanto seu real objetivo era fomentar a divisão racial e social nos EUA, informa o Senate Intelligence Committee Report, Volume 2 (2019).
Movimentos de Esquerda na Europa
Relatórios do Centro de Excelência da OTAN em Comunicação Estratégica (NATO StratCom) demonstraram que canais de mídia estatal russa, como RT e Sputnik, deram plataforma e visibilidade desproporcional a movimentos de esquerda radical, como Antifa, Extinction Rebellion (ambientalistas radicais) e Occupy Wall Street (nos anos 2010). O padrão identificado era claro: RT e Sputnik amplificavam narrativas que atacavam o capitalismo, as elites financeiras, a OTAN, a União Europeia e os EUA, utilizando discursos tanto da extrema esquerda quanto da extrema direita. As informações estão disponíveis no relatório: NATO StratCom report: “Social Media as a Tool of Hybrid Warfare” (2016)
Separatismo Racial e ao Pan-Africanismo Radical
O relatório da House Intelligence Committee dos EUA (2018) apontou que páginas operadas pela IRA não apenas apoiaram o BLM, mas também grupos que defendiam o separatismo afro-americano, com conteúdos como defensores da criação de uma “nação negra” separada nos EUA. O relatório também percebeu o incentivo de discursos contra brancos, com o objetivo de gerar reação social violenta e utilizá-la em benefício da agenda dos protestos. Foram identificados perfis falsos que até angariaram dinheiro e organizaram protestos físicos reais nos EUA, sem que os participantes soubessem que estavam sendo manipulados por agentes russos, de acordo com o documento da House Intelligence Committee release of Russia-linked Facebook ads (2018).
Narrativa Ambientalista Radical
A Rússia tem interesse direto em enfraquecer a competitividade energética dos EUA e da Europa. Uma investigação feita pelo U.S. House Committee on Science, Space, and Technology (2018) apontou que veículos como RT America financiaram e promoveram campanhas contra o fracking e projetos de energia nos EUA e Europa. Eles também deram apoio midiático a movimentos ambientalistas radicais, criando um paradoxo: enquanto a Rússia lucra com petróleo e gás, promove movimentos ambientais radicais no Ocidente que tentam destruir a matriz energética concorrente, de acordo com o relatório Committee report: “Russian Attempts to Influence U.S. Domestic Energy Markets” (2018).
O mais novo Relatório do Instituto Estudos Nacionais traz uma rede de influência ligando a atividade do Kremlin na política e movimentos de direita pelo mundo. Além disso, explica como os fundamentos filosóficos de autores como Martin Heidegger funcionam para unir e catalisar ideologias aparentemente opostas para o apoio à Rússia. Na verdade, como explica bem o relatório, o uso instrumental de Heidegger pelo ideólogo russo Alexander Dugin associa o novo eurasianismo às demais doutrinas neofascistas, ao fundamentalismo islâmico, ao ambientalismo e até à ideologia de gênero. Tudo isso dentro da mesma filosofia exposta no livro Ser e Tempo, do filósofo alemão que aderiu ao nazismo.